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Não há barreiras para a despedida

  • Foto do escritor: Barbara Schiontek
    Barbara Schiontek
  • 8 de nov. de 2020
  • 9 min de leitura

Atualizado: 26 de nov. de 2020

Quando alguém morre, os rituais que marcam os últimos momentos são uma parte significativa de todo o processo, mas com a pandemia da covid-19 esse cenário foi modificado


Por Barbara Schiontek

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Ao perder o filho, ela só se deu conta que ele tinha morrido quando viu o caixão descendo e a terra sendo jogada em cima. Naquele momento, aquela mãe, de fato, percebeu que não veria mais o filho. Essa é a história de uma das pacientes da psicóloga especialista em luto, Nazaré Jacobucci. A profissional explica que esse relato é um exemplo que mostra a importância do ritual de despedida, pois é um momento único que dá o início a concretização da ideia da morte, ou seja, a assimilação da morte vem dos rituais de despedida. É por essa razão que a psicóloga é contra dar qualquer medicação para a pessoa enlutada, pois é essencial viver a ocasião da despedida.


Entretanto, os rituais de despedida passaram por mudanças neste ano. A pandemia do coronavírus impôs a necessidade de encontrar outros jeitos de viver os últimos momentos com aqueles que morreram. É o que aconteceu com Jhenyffer Katyelli Bello dos Santos e sua família. Em agosto, a avó da jovem morreu vítima da covid-19. Ela conta que foi a última pessoa a ter contato com a avó que, nesse dia, estava bem. Mas, no intervalo de seis dias foi internada e morreu. Algo repentino e que não era esperado pelos familiares.


A mudança na condução dos procedimentos foi sentida logo de início, pois, como a causa da morte foi covid-19, o velório não foi permitido, o corpo foi enrolado em um saco plástico e o caixão, lacrado. Jhenyffer diz que conseguiram fazer com que o carro da funerária passasse na frente da casa da avó, onde os filhos e os netos estavam reunidos. O veículo ficou ali por cerca de dez minutos e em homenagem, os familiares soltaram balões e depois, seguiram em cortejo até o cemitério.


Apenas dez pessoas puderam entrar para fazer o sepultamento. Então os familiares encontraram a solução de se reunir no pátio da igreja para fazer uma última oração, já que avó da jovem era devota fiel do catolicismo. E foi assim, com o distanciamento social e com a impossibilidade de tocar ou ver o corpo da avó, que aconteceu o enterro.


A família de Jhenyffer ainda procurava uma forma de realizar a despedida em conjunto. Antes do falecimento, eles se encontravam de forma online para rezar pela saúde da avó. Então, decidiram continuar com as reuniões virtuais durante os nove sábados seguintes, para rezar um terço em homenagem e respeito a familiar.


Ao falar de rituais de despedida, a psicóloga Nazaré Jacobucci lembra que cada cultura realiza o ritual de alguma forma. Nos rituais ingleses, por exemplo, o tempo de toda a preparação para o enterro dura cerca de quinze dias, enquanto no Brasil, geralmente, em 24 horas o enterro já aconteceu.


Durante todo o processo do ritual, a psicóloga cita que é fundamental para o enlutado receber apoio social e o afeto dos amigos. Como a pandemia não permite que todo esse contato pessoal aconteça, Nazaré diz ser necessário encontrar alternativas que respeitem a cultura e que façam sentido, mas que seja uma forma de viver a despedida. E ela afirma que a tecnologia pode ser uma aliada neste momento.



A pandemia mostrou que é possível unir em uma reunião virtual um grupo de pessoas que não se conhecem, mas que compartilham o sentimento do luto. É o que o grupo de luto do Jardim da Saudade tem feito desde setembro. E foi nessa reunião que a bancária Francielle Pimentel, em conjunto com os pais, conseguiu dividir a dor que estava vivendo por uma perda ocasionada durante a pandemia.

A jovem relata que em agosto sua irmã de 21 anos morreu de forma inesperada. Diante desse fato, toda a família teve dificuldade em aceitar a perda. Então, Francielle decidiu procurar ajuda. Começou a buscar especialistas no assunto e encontrou uma psicóloga que, além da clínica, conduzia as reuniões do grupo de luto do Jardim da Saudade.

“Eu acho que quando passamos por um momento desses, a gente sente que só você está passando por aquilo. O sentimento é que mais ninguém entende o que você está sentindo, só eu estava com essa dor desse tamanho, só eu que tinha esse azar.”

Francielle conta que quando participou do grupo ela conheceu outras histórias, que eram tão tristes quanto a dela, pois todas envolviam uma perda. Para a jovem, o grupo de luto funciona como dividir os sentimentos, dando a possibilidade de trazer novo sentido para a história. É também uma forma de enxergar que as pessoas sobrevivem a esse momento que é tão difícil. A bancária e a família participaram as duas vezes que o grupo se reuniu virtualmente:


“Quando fomos pela primeira vez já havia pessoas que participavam há meses, dividindo as histórias. Já na segunda vez, nós já não éramos mais tão recentes e deu para ver a diferença. Cada um vai ajudando o outro, pois são sentimentos similares. É comum a gente ver revolta com a religião, esse sentimento de raiva do hospital e do médico. E aí você começa a perceber que você não é o único, infelizmente é um processo normal que todo mundo já passou ou vai passar”.

Apesar da morte da irmã de Francielle ter acontecido durante a pandemia, foi possível realizar o velório, pois a causa da morte não foi por covid-19. Todos os cuidados foram tomados e como a jovem sabia que a irmã era muito querida pelos familiares e os amigos, foi optado fazer o velório em um cemitério aberto, onde todos poderiam ir, sem impedimentos. A única restrição que aconteceu foi o tempo, que teve uma duração menor.


Com relação aos impactos que o grupo de luto pode trazer, a jovem ressalta que é importante que a coordenação do grupo de luto diga palavras de apoio para os enlutados. Ela comentou de outra reunião que participou e que sentiu uma diferença, pois as condutoras não diziam nada confortante, o que acabou trazendo uma sensação ruim e de desamparo para ela.


A psicóloga coordenadora do grupo de luto do Jardim da Saudade, Michele Maba, explica que os rituais de despedida são importantes porque é um momento de acolhimento, no qual as pessoas são abraçadas. Também é o espaço em que é possível ver, tocar e se despedir do falecido. Para a especialista em luto, nada consegue realmente substituir essa forma de despedida, mas existem coisas que podem ser feitas para amenizar o buraco que é criado quando alguém morre. Ela cita o exemplo de uma mulher que perdeu o irmão durante a pandemia e criou um grupo no WhatsApp. O intuito do grupo era prestar homenagens, oferecer apoio aos familiares, trocar fotos e histórias. Foi uma despedida diferente e o grupo virou um local de acalento para toda a família. Nesse sentido, os velórios adquiriram caráter virtual.


E algo que pode ajudar a falar sobre a dor, especialmente neste momento pandêmico, é o grupo de luto. Michele diz que a função do grupo é olhar para o sentimento do outro e socializar sobre isso.




A psicóloga relata que já viu pessoas irem uma vez ao grupo, ficarem animadas e não irem mais. Como se aquela única reunião tivesse cumprido a função. Da mesma forma, existem famílias que já frequentaram por dois anos, todos os encontros. Ela diz que a participação varia de acordo com as características das pessoas, se o indivíduo gosta da exposição, se gosta de falar e se tem a vontade de participar. E é benéfico para o enlutado quando ele entende a dor do outro e se identifica.


A especialista em luto comenta que sentiu várias diferenças entre o grupo presencial e o online. No meio digital, ela percebe que as pessoas estão à vontade, usando pijamas, mas elas ficam mais tímidas, nem sempre ligam as câmeras. Ela atribui que o fato de estar em casa, protegido no lar, cria mais travas nas pessoas e isso faz com que elas não se sintam tão bem dentro do grupo. Enquanto no presencial é mais fácil para os enlutados criarem vínculos:


“Eu já vi viúvos ficarem amigos, famílias passarem o Natal juntas. Isso é muito lindo. Se torna muito especial os ver interagindo entre si”.

Sobre a relação da religião e do enlutado, Michele fala que é comum que as pessoas se segurem na fé ou questionem a própria religião. Os atos religiosos estão sempre presentes no momento da despedida, tendo os rituais próprios.


A DESPEDIDA NA FÉ


O filósofo e doutor em Teologia, Waldir Souza, explica que os rituais de despedida ajudam as pessoas a compreenderem as pequenas delicadezas da vida. O ritual é uma acolhida que possibilita que os indivíduos encontrem respostas e entendam o momento que estão vivendo, para que seja possível dar o próximo passo e seguir em frente.


E dentro das criações culturais está a religião, que auxilia a responder as grandes questões existenciais: por que existimos? Por que sofremos? Por que morremos? Souza diz que as religiões dão sustentação para as pessoas. E nesse aspecto estão os rituais religiosos, que celebram a vida e também, a morte. Os rituais de despedida religiosos possuem a função de acolher o ente querido que esteja em processo de morrer ou que já morreu. Da mesma forma, a família que está passando pelo processo de despedida ou que já passou.

“O mundo religioso dá essas marcas tão profundas para significar, dar sentido a vida para os que ficam e despedir, de uma maneira bonita, aqueles que estão preparando o ambiente que, no futuro próximo, possa nos acolher. Essa é a perspectiva da esperança e da fé, uma experiência profundamente religiosa”.


São inúmeros os rituais religiosos que existem no Brasil e no mundo. No entanto, a reportagem aborda o Catolicismo, por ser uma das maiores religiões do país e também, a Umbanda, por ser uma religião nascida no Brasil.


O padre Lucas Fonseca Machowsky conta que os rituais de despedida católicos passaram por algumas mudanças por conta da pandemia. Todo o processo que era feito antes precisou ser encurtado, não sendo mais possível fazer a despedida como era de costume. Então, quando é possível realizar o velório é feita a oração de encomendação do corpo, que faz parte das Exéquias, que é o conjunto dos momentos que vivem o falecido e os familiares que seguem a religião do catolicismo.


O sacerdote explica que depois da morte, a Igreja dá suporte para as famílias. Existe a Pastoral da Esperança, que faz o acompanhamento das famílias enlutadas, visitando os familiares e rezando por sete dias. Durante a pandemia esses encontros não estão acontecendo, portanto, a Igreja tem sido presente neste momento de outras formas. O acompanhamento com as famílias está sendo feito pelas missas, que recebem como intenção o nome dos falecidos.

“Uma coisa importante, que é uma ação da Igreja, é que neste ano da pandemia o Papa Francisco concedeu indulgências plenárias a todos aqueles que partirem vítimas da covid-19. Isso na dinâmica da fé cristã tem muita relevância”.

O padre Lucas afirma que a Igreja tem procurado dar o apoio dentro do que é permitido. E ele relembra que, de acordo com a crença católica, a morte não é o fim, mas é o começo da vida eterna.


A Umbanda, religião presente e criada no Brasil, também passou por mudanças causadas pela pandemia. A sacerdotisa da Umbanda Luane Dallastra conta que os rituais de despedida vão desde fazer o acompanhamento da família durante e após o falecimento do ente querido, até a celebração que acontece na Gira, nome que os cultos recebem.


Ela relata que para os rituais no velório são reunidos os irmãos e toda a hierarquia, que é o Pai ou a Mãe de Santo fundador da casa e os Pais de Santo feitos pelo fundador. Durante o velório é tocado o tambor e músicas são cantadas, há um canto específico para o momento de desencarne e para a família. O ritual de despedida da Umbanda é feito com alegria, rezando pelo espírito e pela família. No final do desencarne são coletados os materiais utilizados na Gira pelo falecido, que são as roupas brancas e a guia, que é o colar. Esses materiais são queimados em potes de barro ou panelas de ferro, pois faz parte do processo de desligamento do espírito com os materiais.


“Esse material energético é queimado para quebrar essa ligação, não com o terreiro em si, mas é um corte energético para que não seja um empecilho nesse momento de desligamento da matéria. É muito doloroso, porque é algo tão pessoal”.

A sacerdotisa conta que durante a pandemia umas das participantes do terreiro da Vovó Benta morreu. Como não podiam estar presentes no hospital e nem no velório, eles se reuniram na Gira de sábado e celebraram o velório lá, fazendo as orações e queimando os materiais.


Luane fala que a pandemia dificultou um pouco todo o processo do acolhimento, mas afirma que os Pais e as Mães de Santo sempre estão presentes, seja pelo telefone ou pelas orações constantes. E ela relembra que, para a Umbanda, o momento do desencarne é maravilhoso para o espírito, pois é um próximo passo. E ela acrescenta que acredita que o acolhimento para a família é algo que deve existir em todas as religiões, pois isso faz parte da fé.


O LUTO


A psicóloga especialista em luto, Nazaré Jacobucci, explica que a psicologia não utiliza mais o conceito de fases do luto. Mas existe uma fase que sempre acontece, que é a do impacto inicial, do choque quando se recebe a notícia do falecimento de alguma pessoa querida. As demais são questionáveis porque o luto não segue um padrão, ele é dinâmico. “Podemos estar bem e aí escutamos uma música, encontramos alguém e toda aquela dor volta”, cita a psicóloga.


Outro ponto importante é que as pessoas não aceitam a morte, o que acontece é uma compreensão, que se desenvolve a partir do momento que se assimila a perda. Depois de caminhar pelo luto e assimilar os aspectos, se compreende a ausência da pessoa.






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